quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

O propósito não passa de servo da memória

Qualquer forma de apetite mais intenso é um prato cheio para o banquete do auto-engano. A privação, seja ela real ou imaginária, costuma acender um desejo veemente e ofuscante por aquilo de que carecemos. Idealizar o que nos falta é uma propensão quase que inerente à natureza humana. A mais doce canção de liberdade vem do cárcere. O exílio engrandece a pátria. Os pobres não riem da riqueza dos ricos. "Para aqueles que suam pelo pão diário", observou Keynes muito antes da instituição do seguro-desemprego europeu, "o ócio é um prêmio ardentemente desejado — até que eles o conquistem".

A voracidade e o foco dos apetites humanos admitem extraordinária diversidade. O que leva uma pessoa a fazer loucuras pode deixar a outra indiferente. Ultrapassado o patamar das premências biológicas mais elementares, as demandas da nossa imaginação não conhecem fronteiras. Existem dois poderosos núcleos de interesse, entretanto, para os quais converge uma parte expressiva das ações e expectativas humanas: o apetite por sexo e amor na vida privada e o apetite por poder, riqueza e proeminência na vida pública. Ao redor desses dois vetores gravitam vigorosas e obstinadas paixões. [...]

Os antigos não se enganavam ao representar Cupido — a divindade alada dos laços e enlaces amorosos — como um flecheiro de ótima pontaria mas olhos vendados. O amor é cego. Os amantes apaixonados que ousam se amar sem reservas tendem a ficar cegos de amor. Vivem aqui como se estivessem lá, com uma percepção reduzida da realidade e de si mesmos, possuídos pelo momento sublime e inexprimível que estão vivendo. É como se estivessem fora de si — embriagados por poções wagnerianas, hipnotizados pelo fascínio de Circe ou enfeitiçados por encantamentos como o que, segundo a lenda, enlouqueceu Lucrécio. Os apaixonados perdem o sono, dançam na chuva e ouvem estrelas. Tudo o que ressalta é com eles ou quer vê-los chorar, loucos um pelo outro. Unidos na manhã radiante do amor-paixão vitorioso, nada de mau os alcança — exceto os seus próprios enganos. 

A paixão entre os sexos, quando ela explode, é o nada que é tudo. Os amantes parecem movidos por um impulso secreto que os faz genuinamente idealizar um ao outro e encontrar tanta beleza quanto é possível — e impossível — um no outro. Quando a cobra pica e o sangue ferve, a avalanche das emoções desgovernadas arrasta consigo tudo o que estiver no caminho. Os amantes suplicam, imploram, juram amor eterno. Declamam em prosa e verso a sua confiança incondicional um no outro. A certeza íntima de que nunca amarão assim novamente é arrebatadora. O escape da partícula alucinada do tesão adquire a urgência de uma tempestade tropical e dionisíaca. Baco festeja, Vênus se despe. A carícia é bênção, o beijo é reza e a cópula é comunhão. O que está escrito seria pecado negar — era o que tinha de ser. Há momentos que redimem o existir. 

O único problema, é claro, é que o êxtase (grego ékstasis-. "fora de si") dos amantes não dura para sempre. O amor-paixão é amor mortal — eterno enquanto dura, infinito enquanto brilha. Na manhã seguinte de algumas semanas ou meses de sexo ardente, o sol da certeza já não brilha e as sombras da dúvida começam a se adensar. A tirania libertadora oprime, a esperança desafogada sufoca e a beleza luminosa embaça. A ilusão disparada na largada, ao tomar fôlego, descobre-se esgotada. Aos amantes só resta o caminho amargo da desilusão cicatrizante e da volta à mesmice machucada de si. A memória do milagre, contudo, não se rende. O escape da partícula alucinada na mente pode ser fogo-fátuo, mas a radiação que emite enseja espantosas mutações. 

Nem sempre o coração que temos é o coração que imaginamos ter. Nossas motivações prosaicas e veementes — como, por exemplo, o desejo sexual intenso por alguém — são hábeis na arte de se fazer passar, antes de mais nada e para nós mesmos, por sentimentos nobres e propósitos elevados.

O prometer apaixonado engana mas não mente. A melhor maneira de enganar o outro consiste em estar auto-enganado. O amante M e seu amor W formam um par perfeito — o  inverso simétrico do outro  o apelo da paixão é mais forte que eles. Ambos acreditam sinceramente um no outro e em si mesmos. 

Oferta e procura. O enganar de M é convincente porque ele, auto-enganado, engana sem precisar enganar: ele diz a verdade e "a verdade é seu dom de iludir" (Caetano Veloso). W, justiça seja feita, até que esboça alguma dúvida — "Sim, mas depois? O que será de nós dois?" (voz feminina no "Tabuleiro da baiana", de Ari Barroso). A vontade de acreditar, contudo, é mais forte que o medo.

Mas e se M e W pudessem, desde o início, ver o fim: como veriam o princípio? Onde a verdade, onde a mentira: no amor que principia ou no que se desfaz? No acender violento ou no apagar da velha chama? A paixão desde o início não é a paixão desde o fim. Considere o jovem apaixonado que jura amor eterno ou o cônjuge infeliz no casamento que promete, no calor do leito, divórcio em breve e núpcias a seguir. Estarão mentindo? Quanto ao cumprimento efetivo do que foi prometido, só o tempo dirá. Mas da integridade da intenção e do valor de verdade da promessa, no momento em que é feita, como duvidar? A lógica paradoxal do jurar apaixonado é flagrada por Shakespeare na peça dentro da peça encenada em Hamlet. À promessa de amor e fidelidade eterna da rainha, o rei, implacável, replica: 

Acredito sim que penses o que dizes agora
Mas aquilo que decidimos, não raro violamos
O propósito não passa de servo da memória
De nascer violento mas fraca validade
E que agora, como fruta verde, à arvore se agarra
Mas quando amadurecida, despenca sem chacoalho
Imprescindível é que nos esqueçamos de nos pagar a nós mesmos o que a nós é devido
Aquilo que a nós mesmos em paixão propomos,
A paixâo cessando, o propósito está perdido.


Auto Engano, de Eduardo Giannetti
Companhia das Letras, 2005